Como fizemos... Sonho de Art
Como vender um jogo como Dreams para o público em geral? Bem, você precisa de algo especial para mostrar. Algo que destaque a total liberdade de expressão que você tem, algo que prove que dá para criar quase tudo que você imaginar. Não é de surpreender que Sonho de Art, a campanha narrativa que acompanha Dreams desde seu lançamento, comece com a seguinte mensagem:
"Esta história foi feita totalmente no Dreams para dar um gostinho do que é possível fazer com nossas ferramentas. Queremos que ela inspire você a usar estas mesmas ferramentas na sua própria jornada criativa."
Para muitos jogadores, Sonho de Art é o primeiro gostinho do que Dreams pode oferecer. Trata-se da história de Art, um músico desiludido em um momento difícil na carreira, e dos desafios da colaboração criativa. É uma experiência surreal e mágica, típica da Media Molecule. Durante o jogo, você vai voar com dragões, explorar uma floresta mecânica e passar mais tempo com um bigodudo azulado do que poderia imaginar. Sonho de Art também envolve três estilos de jogos diferentes em um só em sua jornada por três mundos, cada um com personagens distintos.
Na verdade, Sonho de Art é mais do que um jogo de exposição para Dreams. Ele representou o produto de tudo que a equipe da Mm fez durante o desenvolvimento inicial de Dreams, como explica o diretor de arte Kareem Ettouney. "Tudo bem, nós criamos um monte de ferramentas. Mas que tipo de conteúdo pode surgir com elas? Logo nos vimos criando diversas cenas rapidinho. Uma das primeiríssimas ideias do Mark [Healey] era a de que, se podíamos fazer todo tipo de maluquices com os cenários, por que não fazemos algo como em um sonho, em que você sai de uma cena de ficção científica em uma porta e vai parar em uma selva ou algo do tipo?"
Com as ferramentas prontas para ser usadas, a equipe já podia inventar todo tipo de ideias doidas para Sonho de Art. A maioria delas veio de jams de jogos internas, onde o pessoal da Molecule pôde brincar com o que o conjunto de ferramentas de Dreams tinha a oferecer, e deram asas às suas imaginações.
O animador-sênior, Mike Pang, se lembra de algumas dessas jams e dos processos criativos irregulares que elas proporcionavam. "Naquela fase inicial, todos nós queríamos falar, então acabamos fazendo um monte de minijogos. Depois todos foram amalgamados para criar uma narrativa, porque, originalmente, Sonho de Art era para ser uma mistura dos diferentes tipos de jogos que você pode criar em Dreams. Então era um jogo de apontar e clicar uma hora, depois um jogo de plataforma, e depois de ação e aventura."
As jams eram uma verdadeira explosão de ideias, mas, como a equipe também estava trabalhando simultaneamente nas ferramentas para criar a campanha que estavam desenvolvendo, tudo também era um tanto caótico. "Tivemos que descobrir como lidar com as fases enquanto trabalhávamos dentro das limitações das ferramentas ainda em desenvolvimento", conta o designer Steven Belcher. "Tudo era desconhecido naquela época. Nem sempre as coisas funcionavam, e nós nem sequer tínhamos ferramentas de animação!" Ainda assim, a equipe se esforçou, e as ideias para o que Sonho de Art poderia ser começaram a tomar forma.
História original#
Dentre as várias jams de jogos, quatro ideias principais surgiram: primeiro, uma história noir de um detetive veterano que investigava um sequestro. Também havia um jogo com um ursinho de pelúcia (uma versão inicial da Frances) que enfrentava zumbis cartunizados. Havia um jogo situado no mundo dos deuses gregos, que competiam em uma espécie de Olimpíada de robôs. Por fim, havia uma aventura fantástica de exploração em uma belíssima floresta. Esses jogos foram as sementinhas para o que vemos na versão final de Sonho de Art (que era chamado Sonho de Derek, inicialmente - um título menos impactante, talvez). A história do detetive noir se tornou a base para Art e seu mundo real com aventuras de apontar e clicar. Frances parou de lutar com zumbis, mas o sistema de combate permaneceu, e ela ganhou um parceiro, o Raposita. A aventura na floresta incorporou robôs e se tornou uma floresta digital. A ideia do jogo dos deuses gregos foi completamente cortada, mas talvez tenha servido de inspiração para os robôs D-PURO e ELE-D.
O diretor de arte Kareem Ettouney nos disse que queria "criar um estilo visual que parecesse uma arte conceitual", o que permitiria que "os jogadores navegassem de forma fluida entre sonhos". Ettouney teve grande inspiração em quadrinhos no estilo noir, o que acabou aparecendo na versão final de Sonho de Art, com seu clima melancólico de ruas chuvosas e escuras. Mas, se já tiver jogado, você deve ter percebido que o jogo não é todo envolto em trevas e tristeza. Os lugares chuvosos que Art explora no mundo real se contrastam com o mundo fantástico e vibrante que Frances e Raposita habitam e com a floresta digital que D-PURO e ELE-D chamam de casa.
Ettouney e a equipe também tinham passado a considerar não só o visual, mas os elos temáticos que poderiam aparecer entre esses três mundos diferentes. "Ainda estávamos tentando tornar os jogos paralelos entre si em termos de ritmo. Eles evoluíam no mesmo lugar, acalmavam no mesmo lugar e iam à loucura no mesmo lugar", conta ele. "A ideia era cortar de um para o outro como em um vídeo de música. Então havia alguns paralelos desde o início que tentavam fazer os segmentos combinarem, como no filme A Viagem, onde você teria trechos correspondentes e coisas do tipo, mas era uma correspondência de ritmos superficial, nada mais do que isso."
O animador sênior Dave Campbell lembra que o maior desafio para ele não era trabalhar na história do jogo, mas encontrar uma forma de ligar as cenas de jogo umas às outras de forma fluida. "Eu tentava conectar as coisas várias e várias vezes. A história mudava de rumo toda hora, e isso determinava que cena levaria à seguinte." Em alguns casos, foi preciso separar cenas muito densas com conteúdo: "Sempre tínhamos que fazer a transição de uma para a outra de alguma forma brilhante para que parecesse uma única cena, quando, na verdade, estavam divididas em duas."
O designer Steven Belcher explica: "Tentamos mesclar tudo o máximo possível para parecer como uma única história, sem que as pessoas se confundam enquanto estiverem jogando. A intenção é não dar tanta clareza do que está acontecendo, mas sem parecer que os jogadores estão pulando de um jogo aleatório para o outro. Tentamos dar coesão a tudo o máximo possível."
"Acho que o que realmente ajudou foi aquela imagem que eu criei [imagem da cabeça de Art como a fortaleza do vilão; veja abaixo]", complementa Ettouney. "Antes disso, tínhamos uma narrativa com "vilões" convencionais. Estávamos tentando pensar quem seria o vilão na história da infância. A ideia inicial era a de Frances e Raposita chegarem a um palácio do mal. Mas nós não estávamos pensando nessa fortaleza como Art. Era só uma paisagem maluca, surreal.
"O que mudou o jogo foi quando começamos a nos perguntar o que aconteceria se toda essa arte se mesclasse", explica ele. "Vamos tratar essa camada dos vilões como um fragmento da alma do Art, e os brinquedos da infância vão andar no labirinto da mente dele passando por instrumentos quebrados. Eu me lembro de inserir esses instrumentos quebrados como uma resposta ao que o Mark queria, que seria tornar tudo isso parte da psique desse cara."
Para Healey, isso foi um momento que mudou os rumos da história: "Tudo não passa de um sonho que esse cara está tendo. Isso nos ajudou a dar coesão a tudo".
Momentos melancólicos#
Sonho de Art é, provavelmente, o jogo mais melancólico que a Media Molecule já criou. Ettouney conta que adotou esse tom e uma história que explora temas de depressão e exaustão como um teste para o que a engine de Dreams seria capaz de fazer. E, assim como em uma produção teatral, ele queria que Sonho de Art tivesse um "cenário simbólico" em que os lugares tivessem tanta influência sobre a atmosfera do jogo quanto as pessoas que você controla ou interage no jogo.
Com um tom mais sombrio, a recomendação etária também sobe. Dada a liberdade criativa oferecida em Dreams, a equipe queria um jogo com classificação etária de 12 anos - e todas as criações no jogo teriam que respeitar as restrições dessa classificação também. A produtora sênior Suzy Wallace lembra que esse foi um dos desafios mais diferentes que a equipe enfrentou. Sonho de Art estava pronto, assim como todo o Dreams, e estava na hora de enviar o jogo para as agências de classificação etária. Uma criação de acesso antecipado contava com uma escultura nua no estilo clássico grego. "Nós nos demos conta de que os conteúdos seriam moderados no mesmo nível", diz Wallace, "para mostrar que não seria mais nudez do que o que seria visto em um museu. E queríamos mostrar que isso não deveria ser um problema."
A ideia, portanto, era conseguir uma classificação para 12 anos. "Como não é possível classificar conteúdos gerados por usuários, tivemos que focar nos conteúdos que já vinham incluídos", ela conta. "E o único conteúdo que tínhamos era Sonho de Art. Lembrei, muito depois, que tínhamos que fazer uma sessão extra só para gravar o Art falando um palavrão. Tivemos que pesquisar com cuidado quais palavrões ainda estariam dentro da classificação de 12 anos, sem subir para 15!"
Pang se lembra da preocupação de que todo esse palavreado poderia diferir muito das experiências típicas da Mm. "Tivemos que incluir muita coisa em Sonho de Art, porque acho que todos se deram conta de que tudo estava um tanto ríspido e muito diferente do estilo da Mm, se compararmos com coisas que já fizemos, como Tearaway. Tudo tinha uma aparência rústica e alegre de trabalhos manuais. Sonho de Art, por outro lado, era melancólico."
Como aliviar o clima#
A narrativa seria fundamental para fazer com que toda aquela atmosfera sombria se direcionasse para algo positivo para um jogo da Media Molecule. Felizmente, a equipe contou com uma ajudinha. Cara Ellison arregaçou as mangas para comandar o desenvolvimento da narrativa, e Kengo Kurimoto chegou para liderar a equipe de design. Os trabalhos das duas equipes se cruzaram muitas vezes durante o desenvolvimento da história, e os dois líderes tentaram da melhor forma guiar o restante do estúdio nesse processo. A diretora do estúdio, Siobhan Reddy, nos conta que foi Ellison que, de fato, "fez com que a narrativa tratasse de uma banda, e construiu todos os elos entre a banda e Art".
"Cara deu uma estrutura à narrativa e, consequentemente, ao jogo", complementa Reddy. "Ela deu vida e nuance aos personagens, e os fez ficar conectados. Ela trouxe humor e encorajou um clima mais leve." A história não seria apenas das dificuldades psicológicas de um homem, mas de como as conexões com seus amigos, principalmente sua melhor amiga Leila, o ajudariam a sair de um estado sombrio para se curar e crescer como pessoa. Assim que a ideia da banda já estava definida, fazia sentido pensar que a música ajudaria Art e seus amigos a reconstruir laços depois de seu grande desentendimento. Um dos melhores momentos do desenvolvimento e da narrativa, segundo Reddy, "foi quando o grupo se reuniu mais uma vez. Essa cena, de amigos e da banda reunidos, é o momento máximo!"
Com a música, também veio o conceito de interlúdios musicais cômicos. Essas coisas trouxeram mais leveza à penosa jornada de Art pela sua própria mente. Além de divertidas e maluquinhas, as músicas também representam elementos narrativos do jogo. Elas costumam surgir sempre que Art quer avançar, bloqueando o progresso dele mental e fisicamente, como se fossem obstáculos. O chefe de áudio Tom Colvin nos conta que as músicas "deveriam cutucar as feridas da insegurança do Art", dando ênfase aos pontos fracos dele em sua jornada de reflexão pessoal.
A princípio, as músicas deveriam ser mais sérias, mas tudo mudou quando Colvin pegou o banjo dele e começou a compor uma música engraçada sobre o tocador de banjo na cena da estação de trem. A partir daí, as coisas passaram a fugir um pouco do controle. A música Bilhete, Por Favor revela que o obstáculo no caminho do Art é bobo e mundano. A música da senha provoca nosso herói com um rap irreverente. A música Relaxe é uma ode no estilo dos anos 60 a não levar as coisas a sério demais, aliviando um pouco a tensão de uma mensagem muito séria: a importância de cuidar da sua própria saúde mental e dos seus relacionamentos ao trabalhar em um ambiente criativo. De todos os elementos de Sonho de Art, a música se tornou o elo que deu união ao jogo. A música até muda conforme você joga. Ao bater nos inimigos com o martelão da Frances, o ritmo acelera, e a percussão se intensifica.
A produtora Angela Tyler relembra a importância desses momentos em que as mecânicas mais musicais foram inseridas. "Acho que eu não estava na reunião, mas me lembro da dimensão de tudo. Estávamos pensando em como poderíamos entregar Sonho de Art", diz ela. "Parecia ter muitas partes diferentes. Tínhamos um monte de fases legais, mas parecia faltar coesão, e não era um produto finalizado."
"Tivemos que passar por esse último obstáculo de juntar tudo de forma coerente, fazendo sentido. Esse foi, provavelmente, o maior desafio, e eu acho que a equipe precisava de alguma coisa que servisse de argamassa. Eu me lembro que John Beech e Ed Hargrave se trancaram em um armário por um fim de semana inteiro. Foi então que criamos a Frances e as guitarras de metal. Eles pensaram em como trazer união às fases confusas e introduziram o metal no final, porque nada daquilo existia antes. Tudo isso em um fim de semana!"
Mas como os habitantes do Sonhocosmo reagiram quando o jogo foi lançado ao público em geral? Wallace ainda se lembra do momento em que as pessoas começaram a interagir com o jogo e do impacto dos comentários delas na equipe. "Dava para ver que as pessoas estavam se divertindo e se emocionando com a experiência. Acho que a equipe toda fez um ótimo trabalho ao criar tudo de forma coesa no final. Quando eu peguei para jogar do início ao fim, a sensação é de que tudo está bem conexo, sabe? De que existe uma grande história que perpassa por tudo aquilo. O roteiro foi incrível e tornou Art um personagem realista por quem podemos sentir empatia, com toda a história de perder o talento e ter que se reconectar com amigos para encontrar a inspiração mais uma vez. Acho que muitas pessoas se identificaram com isso, como pudemos ver nos comentários. Sim, eu me lembro de ter me emocionado. Não sei se alguém chegou a chorar, mas poderia ter ocorrido com todos nós."
É uma experiência emocionante ver algo a que você dedicou seu coração e sua alma ganhar vida e ser recebido pelo público, principalmente algo como Sonho de Art, que teve sua própria jornada tortuosa durante o desenvolvimento. Mas esse é o grande segredo por trás de todo tipo de criação: nem sempre as coisas são tão simples e diretas. Existem muitos materiais que acabam não sendo usados, mas outros são.
Talvez seja por isso que o jogo teve tanto significado para os criadores. Healey diz poeticamente que "[Sonho de Art] poderia ser só um trocadilho, do tipo 'bem, existe um cara chamado Art, e esta é a história dele'. Mas também é 'este é o sonho máximo da própria arte enquanto conceito, e o Art é aquela alma perdida que todos os criadores já vivenciaram em algum momento ou outro".
Como disse o próprio Art, "às vezes só conseguimos enxergar claramente nos sonhos. Como se uma luz se acendesse na nossa mente".
O Guia do Usuário do Dreams é um trabalho em andamento. Vamos adicionar mais recursos de aprendizado e artigos com o tempo, então, fique de olho nas atualizações.